ASN Nacional
Compartilhe

Vinho, café, fertilizante e tecnologia na colheita: versatilidade do açaí inspira empreendedores da Amazônia

Apesar do protagonismo do Pará, outros estados da Amazônia Legal usam inovação e criatividade para potencializar fruto que é um dos símbolos da região
Por Ruanne Lima
ASN Nacional
Compartilhe

“Tu te entregas até o caroço (…) Tens o dom de seres muito, onde muitos não têm nada”. Os versos dos poetas Nilson Chaves e Joãozinho Gomes, na canção “Sabor açaí”, de 1989, resumem bem a presença do fruto na Amazônia e sua versatilidade, sendo matéria-prima de inovações que estão ganhando cada vez mais espaço no mercado nacional e internacional, indo além do consumo tradicional.

Apenas em 2024, o Brasil produziu cerca de 1,7 milhão de toneladas do produto, sendo que os Estados da Amazônia Legal somaram 99,6% de toda a produção. De acordo com os dados mais recentes do IBGE, o Pará lidera a maior fatia, com 92,5%, mas é com inovação e criatividade que empreendedores de outros Estados, como o Amapá e Roraima, têm também avançado na versatilidade e aplicação de tecnologia na cadeia produtiva do açaí.

A cerca de 30 minutos do centro de Macapá (AP), o ritmo de trabalho tem sido intenso no sítio Torrão Bonito, às margens do Rio Curiaú Mirim. Em novembro, durante a realização da Conferência das Partes  (COP 30) em Belém, a empresa Flor de Samaúma vai lançar o sétimo rótulo do vinho de açaí, que leva o nome da entidade protetora das florestas em boa parte da cultura indígena e ribeirinha: Curupira, escolhido também como mascote do evento.

Será uma edição limitada da bebida, com apenas 700 unidades. “Este vinho, com garrafas numeradas e rótulo criado por uma artista indígena Palikur, do Norte do Amapá, será lançado no mercado com o intuito de conscientizar sobre a importância da preservação da floresta. A sobrevivência na Amazônia depende da floresta”, diz João Alberto Capiberibe, ou simplesmente Capi, ativista político e social, que já foi governador do Amapá (1995-2001) e hoje é o gerente do empreendimento.

O vinho de açaí nasceu de mais de 70 experiências de fermentação até alcançar aromas e sabores únicos | Foto: Rogério Lameira/Amazônia Vox

O local de produção do vinho de açaí, batizado de “açaícola”, é também um espaço de ecoturismo e conscientização, onde turistas podem conhecer um pouco da floresta Amazônica, os açaizais, e entender como é produzida a polpa que serve de base para o vinho tinto feito com açaí.

Capiberibe conta que a ideia de produzir a bebida fermentada aflorou no período mais agudo da pandemia, entre 2020 e 2022, quando pensava em diversificar e aproveitar melhor a produção dos açaizais no sítio da família. Como todo empreendedor, o caminho foi de testes e tentativas antes de chegar ao produto.

Nós passamos a fazer experiências de fermentação com açaí e fizemos uma, duas, dez, trinta, quarenta… chegamos a 76 experiências. Descobrimos que o açaí nos oferecia a possibilidade de produzir um fermentado de excelente qualidade e uma diversidade de aromas e sabores.

João Alberto Capiberibe, ativista social

Em contato com pesquisadores, o vinho foi reconhecido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). “Quando recebi o relatório em janeiro de 2023, tive um susto: os vinhos que fazíamos eram excelentes. A análise físico-química mostrou uma enorme semelhança entre o fermentado de açaí e o de uva, com as mesmas substâncias benéficas à saúde, como as antocianinas e os polifenóis, tão valorizados no mercado global”, afirma Capiberibe.

Em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) Amapá, a Flor de Samaúma realizou um curso teórico e prático para consumo e técnicas básicas de produção do vinho de açaí. Abebida precisa de até 30 dias para fermentar e chegar ao ponto de comercialização, conta a assistente de produção Miriam Corrêa. Um litro de açaí pode render até três garrafas de 750 ml.

“Quando a polpa do açaí chega, coloco nos tonéis de 300 litros, misturo com água e levedura e, a partir daí, decidimos se será suave, seco ou meio seco. O processo dura de 15 a 30 dias, dependendo do tipo, e em alguns casos pode ser envelhecido em lascas de carvalho francês ou cumaru, que é conhecido como a baunilha da Amazônia”, explica Miriam.

Vai um ‘cafezinho’ de açaí aí?

Foi na pandemia da Covid-19 que a empreendedora Valda Gonçalves viu o restaurante e uma escola de música que gerenciava ter que fechar as portas. Com experiência de quem trabalha com vendas e serviços para o público desde a adolescência, o jargão de criar na crise não foi uma opção, mas uma necessidade.

Para garantir o básico para casa, passou a trabalhar como motorista de aplicativo. Foi na garagem onde estacionava o carro após um dia de trabalho que ela começou a experimentar um produto inovador: o “café” de açaí. Torrou caroço de açaí do consumo da polpa do produto e começou a produção de maneira artesanal e pedindo opinião e sugestão dos passageiros.

Ela lembra que até corrida fazia de graça e o passageiro pagava apenas pacote do café, caso gostasse do produto. “Foi assim que consegui as primeiras opiniões e os primeiros pedidos. Quando percebi o retorno positivo, decidi vender meus outros negócios que estavam parados e mergulhar totalmente no café de açaí”, lembra a fundadora do “Engenho Café de Açaí”.

Valda Gonçalves apresenta os dois principais produtos da Engenho: o café de açaí, inovação que nasceu na garagem de casa e hoje cruza fronteiras | Foto: Rogério Lameira/Amazônia Vox

No mercado tradicional, muitos comerciantes e consumidores olhavam com desconfiança para a novidade. Valda conta que as pessoas achavam estranho tomar uma bebida parecida com café feita do caroço do açaí, e que precisou insistir para provar que era um produto de qualidade. A transição para a produção em maior escala veio aos poucos: de um quilo, passou para dez quilos, até chegar a 600 quilos por ano.

A virada de chave aconteceu após a participação no programa Inova Amazônia, promovido pelo Sebrae e que já apoiou 409 empresas e 660 ideias com impacto real: 62% dos participantes cresceram em receita e 31% expandiram internacionalmente. Desde 2024, esse modelo está sendo replicado no Cerrado e Pantanal, com mais de 330 iniciativas de bioeconomia apoiadas.

Apoiada pelo Inova Amazônia, Valda começou a ser projetada para o exterior, de onde surgiu interesse pelo seu produto, enquanto enfrentava resistência em Macapá.

A Alemanha foi o primeiro país a receber o nosso café. Depois vieram os Estados Unidos, com um contrato de 2,5 toneladas, e mais recentemente a Austrália.

Valda Gonçalves, empreendedora

Na fábrica da “Engenho”, os caroços são torrados e posteriormente moídos. O processo é artesanal, e não exige a participação de muitos funcionários. Porém, Valda garante que tudo é feito com muito amor, bom humor e energia positiva, para que mais e mais portas se abram.

A empresa quer ampliar a produção de 12 para 30 toneladas mensais até 2026, e lançar novos produtos. Uma das novidades já tem data para lançamento: dezembro de 2025, em parceria com uma empresa norte-americana, de Nova York. A nova bebida, também derivada do açaí, promete ganhar destaque começando internacionalmente. “O Brasil precisa investir no que é nosso. O ‘café’ de açaí nasceu para mostrar que é possível transformar a floresta em oportunidade, sem destruí-la”, concluiu Valda.

O agrônomo Wesley Resplande, sócio-fundador da Amazon BioFert, idealizou a solução que já retira das ruas mais de 5 mil toneladas de caroço de açaí por ano | Foto: Rogério Lameira/Amazônia Vox

Da terra para melhorar a terra: o biofertilizante de açaí

Passando pelas ruas de Macapá em seu carro, o agrônomo Wesley Resplande sempre se incomodou com a grande quantidade de resíduos gerados pela produção da polpa de açaí consumida diariamente na capital amapaense. Cerca de 70% do fruto é descartado – muitas vezes inadequadamente – incluindo o caroço. O incômodo se somou às reflexões de como melhorar a produção nas plantações que apoiava e em sua própria roça, evitando o uso de fertilizantes químicos, que causam danos ao meio ambiente e tem também alto custo.

Foi então que em 2019 começou a testar o uso do caroço de açaí como base para um novo tipo de biocarvão – também chamado de biochar – que é produzido da biomassa, passa por um processo de aquecimento em alta temperatura (pirólise) e serve para melhorar a estrutura do solo para o plantio de diferentes espécies. Logo nas primeiras produções, o agrônomo percebeu que era possível reduzir em até 50% a necessidade de adubação química. E o que começou como solução pessoal logo se transformou em negócio.

Assim nasceu a Amazon BioFert, a primeira empresa da Amazônia brasileira a produzir biochar a partir de resíduos amazônicos, e a segunda em todo o país. Segundo Wesley, os benefícios do biochar vão além do aumento da produtividade agrícola: reduzem a irrigação em até 50% e ajudam a mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Afinal, ao invés de liberar dióxido de carbono e metano – gases de efeito estufa – pela decomposição natural ou queima aberta do caroço de açaí, esse carbono fica “preso” no biochar por centenas ou milhares de anos no solo, melhorando também a composição do terreno para receber outras plantações.

“Hoje a nossa fábrica tem potencial de produção de mais de 1.200 toneladas de biochar por ano, retirando das ruas mais de 5 mil toneladas de caroços de açaí que poderiam estar poluindo o ambiente. Isso significa também mitigar mais de 3.200 toneladas de CO₂ da atmosfera e gerar 1.800 litros de bio-óleo, que pode ser usado tanto na agricultura quanto para biodiesel”, destaca.

O produto da Amazon BioFert já conquistou parcerias com indústrias no Pará e Bahia, mas no mercado local ainda enfrenta certa resistência. “A cada dez produtores que experimentam, os dez querem continuar. O desafio é divulgar, mostrar que o biochar é seguro, eficiente e pode mudar a forma de produzir na Amazônia”, afirma.

Seleção do açaí realizada por robô preserva a qualidade do produto | Foto: Rogério Lameira/Amazônia Vox

Robô colhe açaís evitando acidentes e aumentando produtividade

Também no extremo norte da Amazônia Legal, em Roraima, o Carlos Johnatan Coutinho observou as possíveis soluções para um problema recorrente na colheita do açaí. Quem vê a polpa na tigela ou no supermercado, nem imagina o esforço de ribeirinhos que precisam subir nos pés de açaí para colher os cachos do fruto, usando uma peconha feita de folhas da palmeira para avançar alguns metros e, com um facão, cortar o cacho.

“Meu pai veio do Pará, então, durante a infância e a adolescência ele viveu na área rural colhendo o açaí por ser uma base alimentar. Ele sempre comentava que havia acidentes e que era sofrido o jeito de fazer a colheita”, relata Carlos Johnatan Coutinho, criador do Climbot, um robô capaz de escalar as palmeiras, fazer o corte de cachos e descer com a colheita. “Então, quando eu tive a oportunidade de pensar em uma solução, criei este equipamento que pode salvar vidas e aumentar a produtividade”, relata Coutinho, que cursou  Agroecologia da Universidade Federal de Roraima (UFRR).

O robô é o principal produto da Startup do jovem, a Agranus. A máquina foi responsável por fazer o empreendimento alcançar o top 100 no Prêmio Sebrae Startups 2025. A parceria da iniciativa de Coutinho com o Sebrae começou em 2019, quando ele concorreu ao edital da Bolsa de Inovação de Inovação Tecnológica de Roraima (BITERR), uma parceria do Sebrae com o Instituto Euvaldo Lodi (IEL).

Ainda em fase de testes, a previsão de lançamento para venda comercial do equipamento para venda é no primeiro semestre de 2026. “Agora, em 2025, conseguimos essa conquista de estar no Top 100 do Brasil, o que trouxe muita visibilidade para a Agranus, abriu possibilidades de novas parcerias e reforçou a importância da inovação desenvolvida aqui em Roraima. Estamos confiantes de que no próximo ano iremos ainda mais longe, levando o nome da nossa startup e do nosso estado cada vez mais à frente”, explicou o empreendedor que, com apoio do Sebrae, já participou de missões empresariais em outros estados, capacitações e exposições.

Foto: Rogério Lameira/Amazônia Vox

Como funciona

O Climbot funciona à combustão com um motor de dois tempos – de pequeno porte e o direcionamento é feito do chão, por controle remoto. “Este equipamento tem menos partes elétricas e mais partes mecânicas para ser mais fácil de fazer manutenção em campo. Pensamos no equipamento para o extrativismo, para estar inserido na floresta em ambiente com chuva e que seja alagadiço”, explica Coutinho.

“Ele foi feito para colher palmeira em geral, pensamos no açaí, mas também pode colher a bacaba, por exemplo, que tem o dobro do tamanho do cacho do açaí. Foi pensando em colher palmeiras com frutos da cultura de Roraima: açaí, bacaba e patauá”, explica, acrescentando que o equipamento possui ajuste para pegar desde as palmeiras mais finas até as mais grossas.

O Climbot conta ainda com um sistema de engrenagem para a subida e descida. Pelo controle, o “piloto” do robô troca de marcha e permite a movimentação na planta para cortar o cacho. O equipamento também possui uma mola a gás que permite a tração na planta, o que gera o atrito para segurar e se movimentar na planta.

Segundo ele, a tecnologia não substitui a mão de obra humana, pois precisa do controle e conhecimento de quem está todos os dias na floresta. Mas evita que os coletores se arrisquem subindo palmeiras. Acidentes com animais peçonhentos em altura, quebra de palmeiras e quedas são acidentes recorrentes neste tipo de trabalho.

“Além disso, sem o desgaste físico da subida, o trabalhador consegue aumentar a produtividade. O robô não tira a necessidade de haver um trabalhador, a mudança é só que passa a ser de um peconheiro para um operador. Quem colhia no manual pode receber um treinamento e passar a colher automatizado”, acrescenta.

*Conteúdo produzido em parceria com o portal Amazônia Vox. Revisão e edição de Luciene Kaxinawá e Daniel Nardin.

  • açaí
  • Amazônia
  • desenvolvimento sustentável