Conhecido por ocupar os piores indicadores do país no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) – indicador de bem-estar que considera fatores como renda, educação e saúde de uma população -, o Marajó reclama por políticas públicas efetivas e iniciativas transformadoras que traduzam a potência criativa e cultural do território. Uma dessas ações vem sendo costurada, fio a fio, no município de Soure: o Polo de Moda do Marajó.

O projeto foi criado a partir de um acordo de cooperação entre o Sebrae/PA, o governo do estado, prefeituras locais e outros parceiros, como Senar e Senai. Tem como objetivo desenvolver a produção de moda artesanal local, utilizando referências culturais da arte marajoara, além de fomentar a visão empreendedora nos produtores locais.
A ideia de criar um polo de moda que unisse os costureiros locais surgiu de uma necessidade, quase um problema enfrentado poucos meses antes. Durante a Cúpula da Amazônia, evento ocorrido em agosto de 2023, em Belém (PA), reunindo os presidentes dos países que compõem a Amazônia Legal, o governador do Pará, Helder Barbalho, usou uma camisa com bordados marajoaras, que fez sucesso e chamou a atenção para a beleza e preciosismo da peça, principalmente nas redes sociais.
Com o “viral” da foto usando a camisa, o governo tentou comprar novas peças em uma quantidade grande, para presentear os chefes de Estado que participavam do evento, mas eis que surgiu o problema: não havia camisas na quantidade necessária para pronta entrega.
“Como assim não tinha camisa marajoara para vender no Marajó? O pessoal ficou realmente intrigado e essa foi uma das razões que motivaram a criação do polo”, relembra Jamilly Rodrigues, coordenadora da unidade do Sebrae em Soure.
Dessa necessidade veio a ideia de articular um projeto que fomentasse, estruturasse e desse subsídios para as costureiras e costureiros fortalecerem seus negócios e levar a moda marajoara adiante.

“Depois disso vieram os cursos de corte e costura, de grafismo marajoara, empreendedorismo, entre outros. Também já realizamos diversas mostras e até desfiles. Agora, conseguimos entregar 30 máquinas de costura novas para os integrantes do polo, além de conseguir mapear esses produtores, saber quem são, onde estão, com o que trabalham. Hoje temos mais de 70 costureiras e costureiros inscritos no polo, que trabalham não só com a camisa marajoara tradicional, mas replicando outros grafismos, fazendo biojoias e até quimonos”, explica Renata Rodrigues.
Sacos de algodão que vestiam os vaqueiros dos campos marajoaras

A camisa marajoara tradicional é confeccionada, geralmente, de algodão, com manga comprida e o galão – um tipo de fita decorativa feita à parte e depois costurada à roupa – trazendo detalhes geométricos.
A costureira de Soure, Rosilda Angelim, conta que a tradição das camisas começou com as esposas dos vaqueiros do Marajó, que, até a década de 1970, utilizavam sacas de açúcar, feitas de algodão, para produzir camisas de manga comprida para seus maridos enfrentarem o sol intenso dos campos marajoaras.
Com o tempo, para deixar as roupas mais bonitas, elas passaram a decorar as camisas com esses galões, uma espécie de fitilho. Os donos das fazendas, vendo as peças cada vez mais bonitas e trabalhadas, se apropriaram e passaram a utilizar também em seu vestuário e assim a camisa do vaqueiro marajoara permanece até hoje como símbolo dessa cultura e tradição.

Em Soure, Maria da Cruz Silva Gurjão, a dona Cruz, é reconhecida como a costureira mais antiga em atividade e quem mantém vivo o legado da produção dessas tradicionais camisas. Com 77 anos recém-completados, ela mostra uma energia firme ao dividir seu tempo entre os pedais das máquinas com o cuidado com seus animais: as galinhas que convivem em perfeita harmonia em seu pequeno quintal com a Pantera, seu pitbull de estimação.
“Ontem mesmo eu fui dormir duas da manhã terminando uma encomenda”, diz ela, na sala de sua casa, que também serve de ateliê de costura, onde as máquinas – a antiga e a nova recebida pelo projeto do polo de moda – dividem espaço com uma chocadeira elétrica, recheada de ovos caipiras, que ela costuma dar de cortesia para as visitas.
“Todas essas aí já estão encomendadas, não tenho nenhuma para vender nesse momento”, completou dona Cruz, apontando para as cerca de cinco camisas penduradas em um varal na sala. Para produzir uma camisa, ela leva cerca de uma semana, considerando o bordado do galão, costura da nervura e fixação na roupa.
Tradição que passa de mãe para filha e filho

Foi vendo a mãe costurar para fora que Rosilda Angelim lembra de seus primeiros contatos com uma máquina de costura. “Lembro que ficava ali do lado dela, brincando com os retalhos de roupa. Aquele mundo era uma coisa meio mágica”, diz.Sua primeira máquina de costura veio aos nove anos de idade: uma caixa de tomate com um espinho de tucumã fazendo as vezes de agulha. “Eu ficava furando a caixa com o espinho, para fingir que era o barulho da agulha, eu gostava daquele barulho”, relembra Rosilda.
Dona da marca Cañybó – palavra apontada como uma das possíveis origens do termo quilombola, mas que para ela tem o significado de “em busca de algo melhor” -, Rosilda nasceu e passou os primeiros anos da infância no quilombo do Bairro Alto, em Salvaterra. Aos cinco anos de idade, ela se mudou com a família para o município vizinho de Soure, para estudar.

Após anos trabalhando na área da educação, ela se viu em uma encruzilhada quando ficou sem emprego. “Cheguei a ir no fundo do poço mesmo, tive uma depressão profunda e costumo dizer que a moda que me salvou e me deu um novo sentido de vida”.
Após realizar um curso de serigrafia e começar a trabalhar com a técnica, Rosilda começou a fazer suas primeiras peças de vestuário e vender para os amigos. Depois vieram as confecções de uniformes escolares até chegar às peças que carregam nas estampas e no propósito a valorização da cultura marajoara.
Ela conta que, no início, as pessoas tinham certa resistência em usar roupas com grafismos ou qualquer outra referência à cultura marajoara. Hoje ocorre justamente o contrário, uma procura cada vez maior por peças que tragam esses elementos. “Trabalhar com moda marajoara, pesquisar e criar peças que carregam toda essa tradição é a minha alma. É a memória da gente, é parte de quem somos”, afirma Rosilda.
A moda também é herança que passa de mãe para filho na família de Gleice Santos. Ao lado do filho Iuri, ela descobriu novas possibilidades a partir da valorização e customização de peças em crochê e outras técnicas, especialmente dos grafismos marajoaras em suas peças.

“Eu sempre trabalhei mais com o crochê, foi somente depois de entrar no projeto (do polo de moda) que comecei a atuar também no corte e costura e ter mais contato com esse movimento de maior valorização da arte marajoara. Pensei: por que não adaptar o grafismo para o crochê? E deu certo, foi uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida. Essa trajetória mudou a minha vida e a da minha família, hoje meu filho também faz parte do projeto e nós dois seguimos firmes e fortes mostrando para o Brasil e para o mundo que é possível ter uma renda a partir da nossa arte”, comenta Gleice.
O filho de Gleice, Iuri, segue os passos da mãe e conta que desde cedo já arriscava as primeiras costuras. “Lembro que eu fazia as roupas dos meus bonecos desde novinho”, conta. “Depois continuei acompanhando e ajudando a minha mãe. Dentro das capacitações que a gente teve, pude desenvolver mais minhas habilidades e aperfeiçoar um olhar mais forte para essa área e entender que temos que nos apropriar da nossa identidade marajoara, para não vir alguém de fora e se apropriar do nosso lugar”, completa Iuri.
Grafismos que conectam passado, presente e futuro

Se hoje há um grande movimento de fortalecimento e valorização da arte marajoara, muito se deve aos achados arqueológicos dos povos originários que habitaram o território há centenas de anos. Graças a essas descobertas, sobretudo das cerâmicas, foi possível entender um pouco melhor como viviam os indígenas que ocuparam a região em fases distintas.
Desses achados, como vasos, vasilhas, cacos e outros resquícios, foram extraídos os famosos grafismos marajoaras, legado que se mantém vivo por meio da arte e do trabalho como os das costureiras e dos artesãos ceramistas que carregam no ofício essa sabedoria ancestral.

Uma dessas iniciativas é o Ateliê Arte Mangue Marajó, um coletivo de 22 artistas e ceramistas que há mais de 20 anos atua na formação, salvaguarda e difusão da cerâmica e da cultura marajoara.
“O trabalho que desenvolvemos em todos esses anos no ateliê já gerou impactos muito grandes e esperamos que continue reverberando. Isso vai desde a formação e profissionalização de jovens ceramistas, que atuam com a gente ou de forma independente, até essa retomada da cerâmica e dos grafismos, a discussão sobre esse histórico da ocupação humana no Marajó e a importância de conhecer e se reconhecer nessa história. É entender que está tudo conectado, tudo relacionado”, explica Cilene Andrade, ceramista e uma das fundadoras do Arte Mangue Marajó.
Já para o artista Ronaldo Guedes, marido de Cilene e também fundador do ateliê, é preciso enxergar esse legado como uma vocação natural da região, para fazer com que esse cenário ganhe força e contribua positivamente para a região e as pessoas que vivem no território.

“A gente pisa em um lugar muito especial, um território de muita ancestralidade, aqui tem uma datação de ocupação humana que chega há mais de 3.400 anos. Então, é preciso entender isso e enxergar esses modelos como uma vocação natural da região, quando a gente pensa a Amazônia e pensa quais as alternativas econômicas, a produção da cerâmica pode ser um modelo a ser seguido, pois traz na sua produção muitos saberes, muito respeito com a natureza e essa memória coletiva. É um fio que nos conecta a nossa história e a nossa ancestralidade”, explica Guedes.
* Revisão e edição de Luciene Kaxinawá e Daniel Nardin